sábado, 29 de março de 2014

Hidrelétrica Santo Antônio do Jari: energia para produzir celulose no coração da Amazônia

Foto aérea da fábrica de celulose às margens do Jari (Wikipédia) - Fonte: Observatório Ambiental
A barragem da UHE Santo Antônio do Jari rompeu hoje (29) no município de Laranjal do Jari, no Amapá. Há vítimas e ainda não se tem ideia das implicações ambientais do acidente. É importante conhecer a história desse projeto desde sua concepção. Publiquei o artigo em 2008 e o reproduzo agora, atualizado. Estudos da Aneel projetam a construção de mais três hidrelétricas no rio Jari. 

Rio Jari: energia para celulose

Por Telma Monteiro


Jari é uma variação da palavra indígena airi. Significa "rio da castanha". O rio Jari é afluente na margem esquerda do rio Amazonas e limita os estados do Pará e Amapá.

O município de Laranjal do Jari (Amapá) tem aproximadamente 37 mil habitantes às margens do rio e que vivem em palafitas de até dois andares. Laranjal do Jari já foi a campeã em prostituição infantil. A hidrelétrica no rio Jari acabaria com a exuberante Cachoeira de Santo Antônio e só beneficiaria a empresa Jari Celulose e sua indústria poluente de papel. 

Famílias extrativistas da Reserva do Cajari insistem que é possível um desenvolvimento sustentado utilizando a floresta de maneira equilibrada e sem necessidade de se construir uma hidrelétrica no rio Jari.

A Jari Celulose ocupa 1.734.606 hectares distribuídos em terras nos Estados do Pará (55%) e do Amapá (45%), cortadas pelo rio Jari, que faz a divisa entre os dois estados. Na região do Jari vivem hoje cerca de 100.000 habitantes, distribuídos pelas cidades de Monte Dourado (Pará), Laranjal do Jari (Amapá), Vitória do Jari (Amapá) e Almeirim (Pará).

A hidrelétrica Santo Antônio do Jari, da Jari Celulose, do Grupo Orsa, foi licenciada pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (IBAMA) e aprovada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). O projeto prevê uma usina a fio d’água e, curiosamente, “sem alagamento da área”. Qual é o milagre? Ainda, segundo a empresa, “não trará danos ao meio ambiente, nem irá alterar a estrutura atual da Cachoeira de Santo Antônio” e “seu funcionamento irá evitar futuras pressões sobre a floresta nativa”.

O engenheiro Marcos Drago, da Eletronorte, em entrevista ao Diário do Amapá, em 26 de Março de 2008, alertou para o fato de que a geração prevista para a Hidrelétrica Santo Antônio do Jarí não poderia ser mantida o ano todo, pois no período da estiagem não haveria vazão suficiente para funcionar as turbinas e seria preciso acionar a termelétrica ou mesmo buscar energia da usina de Tucuruí. Mesmo assim, a Eletronorte aceitou ser parceira da Jari Celulose nesse empreendimento. Nós já vimos esse filme em Belo Monte. A história se repete.

O projeto da Hidrelétrica Santo Antônio do Jari terá potência instalada de 100 MW e a localização nos municípios de Almeirim e Mazagão para aproveitar o local das quedas d'água da Cachoeira de Santo Antônio, um dos 15 sítios da região tombados pelo patrimônio histórico.

O Senador José Sarney anunciou, em Dezembro de 2007, em Macapá, Amapá, que o Governo Federal tinha autorizado (?) a concessão para construção da Hidrelétrica Santo Antônio do Jari, no rio Jari. O senador eleito pelo Amapá já havia comunicado, em Junho do mesmo ano, que “nenhum entrave mais existe para a consolidação do consórcio que irá construir no rio Jari a hidrelétrica de Santo Antônio, uma usina prevista para gerar algo em torno de 100 megawatts de energia elétrica, mas que novos estudos projetam algo bem perto dos 200 megawatts”.

O “rio” de dinheiro público

Segundo a revista Isto É de julho de 2002, “...A agonia da Jari se prolongou até 2000, quando a Fundação Orsa abocanhou parte da empresa que fabrica celulose, por simbólico R$ 1 e assumiu uma dívida de US$ 415 milhões.” Dessa dívida considerada impagável pelos “compradores”, US$ 100 milhões são devidos ao BNDES e US$ 50 milhões ao Banco do Brasil. Na época, a Jari Celulose recusou investir US$ 32 milhões para impedir que a fumaça preta e o mal cheiro contaminasse o ar da região. A prioridade da empresa seria a construção da hidrelétrica para aumentar sua competitividade. 

A Jari Celulose nasceu da frustrada tentativa do excêntrico empresário e bilionário americano Daniel Keith Ludwig que, na década de 70, queria substituir a mata nativa por florestas de eucaliptos e alimentar o mercado mundial de celulose com a produção no Jari e a destruição da Amazônia. Enfiou US$ 1,3 bilhão em 16 mil quilômetros da mata. Destruindo-a.

Mais de US$ 200 milhões de dinheiro público dos contribuintes brasileiros foram enfiados para cobrir as dívidas deixadas por Ludwig e o Banco do Brasil acabou comprando mais US$ 180 milhões em ações preferenciais. 



O ataque silencioso contra o rio Jari 

Como disse o Senador José Sarney, nada poderia atrapalhar a construção da Hidrelétrica Santo Antônio do Jari, sobre a tombada Cachoeira de Santo Antônio. Então, em 21 de Julho, agora, de 2008, o Ibama emitiu o documento de vistoria técnica na região do Jari onde pretendem fazer a hidrelétrica. No dia 27 de Julho saiu o Termo de Referência com a “liturgia” para a elaboração do EIA/RIMA que confirma o processo de licenciamento e a aprovação dos estudos de viabilidade pela Annel. E, a sopesar as últimas notícias, o licenciamento deverá transcorrer célere enquanto os ambientalistas tentam evitar o desastre no rio Madeira.

O reservatório do projeto da Hidrelétrica Santo Antônio do Jari vai afetar diretamente os municípios de Laranjal do Jari (Amapá) e Almerim (Pará). A área foi classificada pelos técnicos que realizaram a vistoria, como de excepcional beleza cênica, fonte de abastecimento de água potável da região e área de preservação permanente. Não há menção das terras indígenas na bacia do rio Jaru.

Mais uma das mais belas cachoeiras do Brasil, a Cachoeira Santo Antônio do rio Jari, está sendo exterminada. A luta continua.

quinta-feira, 27 de março de 2014

O escândalo do licenciamento ambiental das hidrelétricas no rio Tapajós – Parte 1

Localização da UHE Jatobá - Mapa Eletrobras
Uma análise dos bastidores do processo de licenciamento das hidrelétricas planejadas no rio Tapajós.
 Por Telma Monteiro
 O processo de licenciamento da hidrelétrica (UHE) São Luiz do Tapajós começou no Ibama, em 25 de maio de 2009. Nesse dia, o diretor de Licenciamento Ambiental, Sebastião Custódio Pires, requisitou a abertura do processo de licenciamento da UHE São Luiz do Tapajós, no rio Tapajós, a pedido da Eletrobras. Nesse mesmo mês foi emitido o Termo de Referência (TR) para elaboração do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e respectivo Relatório de Impacto Ambiental (RIMA).
O projeto da UHE São Luiz do Tapajós foi planejado para operar a fio d’água, no médio Tapajós, na porção oeste do Pará. A ficha de abertura do licenciamento diz que o reservatório terá 722,25 quilômetros quadrados e ocupará parcialmente os municípios de Itaituba e Trairão. Os cálculos são grandiosos para barrar o indomável rio Tapajós. Exemplo disso é a extensão da barragem, prevista para ter 6.900 metros e 17 comportas que permitirão o escoamento de 60 mil metros cúbicos de água por segundo. Esse é um dos piores projetos hidrelétricos idealizados pelo governo federal.
É tão ruim, que apostou na ignorância dos leigos em matéria de projetos hidrelétricos, principalmente nos rios amazônicos. Corredeiras e cachoeiras do trecho de São Luiz do Tapajós podem desaparecer com a vazão reduzida inventada pela Eletrobras.
Quando o projeto foi proposto, ainda não se falava em “usina plataforma” eufemismo só inventado como cortina de fumaça para disfarçar a monstruosidade planejada. Os brados em defesa do rio Tapajós e seus povos ecoou pela Amazônia com a rapidez de um raio. O Ministério de Minas e Energia, então, resolveu criar e com isso deu vida a um conceito – usina plataforma - que é um desafio à inteligência dos comuns dos mortais.
Para gerar 6.133 MW estão previstas duas casas de força e 33 turbinas tipo bulbo. As mesmas que estão sendo testadas no rio Madeira, nas usinas Santo Antônio e Jirau, e que podem estar causando aquela catástrofe. É nesse trecho do rio que está situada a comunidade Pimental e onde se encontram as famosas corredeiras e cachoeiras. Para alimentar a casa de força principal, na margem direita, a jusante (depois, rio abaixo) das cachoeiras, foi planejado um canal de desvio das águas, com cerca de 10 quilômetros. As águas do tapajós que embelezam as corredeiras e cachoeiras serão reduzidas. Quem não ouviu o caso do desvio das águas do rio Xingu, no trecho da Volta Grande do Xingu, para alimentar a casa de força principal de Belo Monte? Ou outro desvio de águas do salto de Dardanelos, no rio Aripuanã, para o mesmo fim?
A Volta Grande do Xingu vai praticamente secar e o salto de Dardanelos perdeu sua majestade. O projeto de desviar as águas das corredeiras de São Luiz do Tapajós ainda é uma incógnita. Apesar do processo de licenciamento ter iniciado, a Eletronorte não definiu quantos metros cúbicos serão necessários desviar das águas do rio Tapajós que passam pelas cachoeiras, para alimentar a casa de força principal. No entanto, a Eletronorte tem o cálculo do número de turbinas necessárias para gerar os 6.133 MW.

Em setembro de 2009, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO) identificou que todos os projetos hidrelétricos que constam nos Estudos de Inventário dos rios Tapajós e Jamanxim -  UHEs São Luiz do Tapajós, Jatobá, Jamanxim, Cachoeira dos Patos e Cachoeira do Caí -  previam que os respectivos reservatórios inundariam áreas dentro dos limites de Unidades de Conservação de Proteção Integral.  O ICMBIO, então manifestou-se contrário à abertura do processo de licenciamento, sob pena de infringir a lei.

Diante da explícita discordância do ICMBIO, o diretor de licenciamento ambiental do Ibama, Sebastião Custódio Pires, não teve outra alternativa senão a de não emitir o TR que orientaria os estudos ambientais das usinas do Tapajós. Até então, a abertura dos processos das cinco usinas já tinha sido solicitada e tudo indicava que a estratégia do governo era conseguir um TR único.

Apenas em maio de 2010 a Eletrobras solicitou a retomada do processo de licenciamento de todas as usinas, respaldada no Decreto n° 7.154 de 09 de abril de 2010, assinado pelo então presidente Lula. O tal decreto, nitidamente, parecia “encomendado” para se “encaixar” na situação do licenciamento das usinas do Tapajós. O Ministério do Meio Ambiente (MMA) encaminhou a solicitação ao ICMBIO baseado em “um fato legal novo”.  

Decreto 7.154 de 9 de abril de 2010
Publicado no DOU de 12 de abril de 2010
Sistematiza e regulamenta a atuação de órgãos públicos federais, estabelecendo procedimentos a serem observados para autorizar e realizar estudos de aproveitamentos de potenciais de energia hidráulica e sistemas de transmissão e distribuição de energia elétrica no interior de unidades de conservação bem como para autorizar a instalação de sistemas de transmissão e distribuição de energia elétrica em unidades de conservação de uso sustentável. 
Brasília, 9 de abril de 2010; 189° da Independência e 122° da República. 
LUIZ INÁCIO DA LULA DA SILVA
Márcio Pereira Zimmermann
Paulo Bernardo Silva
Izabella Mônica Vieira Teixeira

O ICMBIO, no entanto, não aceitou a interpretação dada ao Decreto pela Eletrobras. Na verdade, ele não autorizava os órgãos ambientais a concederem o licenciamento ambiental de usinas em unidades de conservação, apenas regulamentava os estudos de aproveitamento de potenciais de energia em áreas protegidas. Em março de 2011, os processos das cinco hidrelétricas foram oficialmente encerrados.
Depois desse episódio, governo federal, Ministério de Minas e Energia (MME) e Eletrobras, precisaram de um bom tempo para armar outra estratégia para viabilizar os projetos do Tapajós. A grande ideia viria somente em 2012, com a Medida Provisória (MP) n° 558, assinada por Dilma Rousseff.
A escandalosa MP publicada no Diário Oficial da União (DOU), em 06 de janeiro de 2012, pegou a sociedade de surpresa. Dilma Rousseff simplesmente alterou as configurações das UCs federais para fazer “caber” os reservatórios dos projetos hidrelétricos do Tapajós. Dilma Rousseff ficará na história como a presidente que mudou o destino do rio Tapajós, da biodiversidade da região, das suas comunidades tradicionais e dos seus povos indígenas.
Não foi preciso esperar muito. Na semana seguinte, em 11 de janeiro, a Eletrobras entrou com o pedido de nova abertura do processo de licenciamento, desta vez, apenas para a UHE São Luiz do Tapajós. Anexou, também, uma minuta do TR de sua autoria, numa tentativa de definir o EIA/RIMA como melhor lhe convinha. Tem início aí um verdadeiro “licenciamento express”.
Continua na Parte 2, com as alterações do Termo de Referência, as manifestações dos Munduruku, o posicionamento do Ibama, os conflitos na comunidade Pimental. 

sábado, 22 de março de 2014

Um depoimento sincero sobre os Tenharin e Jiahui, por Telma Monteiro

Japi’i Tenharin (de camisa verde) e Moangathu Jiahui se dirigem à mesa, composta por Deborah Duprat, Telma Monteiro e Cleber Buzatto. Foto: FAOR
O foco midiático do caso Tenharin, em Humaitá, sempre foi as mortes dos três homens, atribuídas à vingança dos indígenas pela morte do cacique Ivan Tenharin. Questões a meu ver importantes, como informações sobre o cacique Ivan Tenharin, sobre o atropelamento ou sobre a cobrança do pedágio, foram omitidos. Resolvi, então, aproveitando a oportunidade, ouvir o relato de duas lideranças, uma Tenharin e outra Jiahui. Estávamos juntos no Simpósio Energia e Mineração em Terras e Rios dos Povos Originários, na UNB, em Brasília, quando perguntei se eles queriam falar a respeito. Eles concordaram e abriram seus corações.
Por Telma Monteiro, exclusivo para Combate Racismo Ambiental
Algo jamais mencionado nas notícias publicadas, mesmo em blogs sérios, diz respeito ao fato de o  cacique Ivan Tenharin, um Cacique Patriarca Tradicional, ter morrido um mês depois de ter colaborado com a Polícia Federal e o Ibama numa operação na Gleba B da TI Marmelos. Ele acompanhou a operação em fazendas que estavam extraindo madeira ilegal e foi visto pelos madeireiros. Isso não foi investigado, embora na região coisas como essa possam fazer toda uma diferença.
Essa e outras informações me foram dadas durante uma longa e franca conversa que tive com duas jovens lideranças, uma da etnia Tenharin, Angelisson Japi’i Tenharin, da Gleba A da TI Marmelos e com Moangathu Jiahui da terra indígena Jiahui, também cortada pela Transamazônica. Nos sentamos debaixo de uma árvore frondosa e a conversa fluiu sem que eu precisasse fazer muitas perguntas. Ambos estiveram presentes desde o atropelamento do cacique Ivan Tenharin até os momentos dramáticos que culminaram com a revolta contra os indígenas e contra o pedágio na Transamazônica, nos dias 25 e 27 de dezembro de 2013.
Moangathu Jiahui tem trinta anos. É líder geral do povo Jiahui, coordenador geral da Organização dos Povos Indígenas do Alto Madeira (OPIAM) e é acadêmico de engenharia ambiental. Um líder geral tem a função de coordenar as ações de todo o território. A terra Jiahui tem 98 indígenas. Angelisson Japi’i Tenharin, tem 24 anos e é secretário geral da OPIAM e abandonou os estudos. O território Tenharin tem uma população de 800 indígenas.
“A morte do cacique Ivan Tenharin não foi acidente”, afirmaram os dois. “Não houve perícia”. Quando Moangathu chegou ao local do atropelamento, o cacique ainda estava vivo e só depois de uma hora ele foi levado de ambulância para Humaitá. O hospital não tinha condições de realizar uma cirurgia intracraniana para tirar o coágulo que se formara. Então o cacique foi levado para Porto Velho, mas morreu 30 minutos depois de chegar lá, quando se preparava para a cirurgia.
Moangathu me contou que quando foi avisado do atropelamento se dirigiu imediatamente para o local onde já estava um Tenharin. Ele encontrou o cacique Ivan Tenharin numa posição arrumada, sem escoriações, deitado de costas, pés juntos e ao lado dele estava um pedaço de pau.
O curioso, me comentou, é que ele procurou o capacete e o encontrou escondido atrás de uma moita, cerca de seis metros do acidente. A moto não tinha um arranhão, a não ser o retrovisor quebrado. Mas não houve perícia e também esses os detalhes foram ignorados pela polícia.
 Depois da morte do cacique Ivan Tenharin, os clãs e famílias, aproximadamente mil indígenas, tiveram uma conversa na aldeia. Trataram do sepultamento e da necessidade de esclarecimento dos fatos que levaram à morte. Estavam tristes e magoados e resolveram cobrar providências das autoridades.
A primeira medida foi ir à Humaitá, procurar a Funai. Não encontraram o servidor que estava respondendo pelo expediente. Em seguida pediram para a Polícia Federal investigar todas as dúvidas sobre o “acidente”. Depois de mais de uma semana cobrando providências, nada aconteceu. Não houve qualquer manifestação da polícia civil ou da polícia militar. Foram 20 dias transcorridos sem investigação. As pistas se perderam.
Cansados de esperar, os indígenas recorreram ao exército, 54º BIS ou 54º Batalhão de Infantaria de Selva, em Porto Velho.


Mapa das Terras Indígenas Tenharim (Glebas A e B) e Jiahui, editado por Telma Monteiro
O pedágio
Havia ainda outras questões que ainda não estavam claras para mim. A cobrança do pedágio, por exemplo. Aproveitei a oportunidade para pedir que Moangathu Jiahui e Japi’i Tenharin contassem como se dava a cobrança do pedágio na Transamazônica e qual era o arranjo entre eles.
As grandes carretas pagavam R$ 70, os caminhões R$ 30, as caminhonetes R$ 20, os veículos de passeio R$15 e as motos R$ 10. Mas, o mais interessante é a forma como se arrecadava e como os recursos eram distribuídos.
Os Tenharin e Jiahui formaram 36 grupos de sete famílias. Cada grupo de sete famílias se responsabilizava pelo pedágio durante quinze dias. Arrecadava em média R$ 20 mil nesses quinze dias, que eram divididos entre as famílias do grupo, o que resultava em aproximadamente R$ 2.800 por família. Cada grupo, portanto, só voltaria ao pedágio somente 18 meses depois.
Esse valor seria a grande “fortuna” que os indígenas arrecadavam com o pedágio, que eles chamam de compensação pelos problemas causados em suas terras e suas vidas, com a construção da Transamazônica. Cada família deveria viver com seus “magníficos” R$ 2.800 durante um ano e meio.

Para reforçar o orçamento, alguns indígenas têm emprego na aldeia, na escola, como agentes de saúde e ganham um salário mínimo. Houve um momento em que eles até assumiram participar, por breve período, da venda de madeira clandestina. Depois de tanto denunciar o corte ilegal em suas terras e não conseguirem que as autoridades tomassem as devidas providências, aderiram ao ilegal para chamar a atenção. A tentativa durou muito pouco, já que começaram a ser explorados e ameaçados pelos madeireiros. Mas a extração de madeira ilegal em seus territórios continua.
A sub procuradora geral de República, Deborah Duprat, assina o protocolo de recebimento da carta da OPIAM. Foto: Telma Monteiro
Aproveitando o Simpósio, as duas lideranças entregaram uma carta à subprocuradora geral da República, Deborah Duprat, em que manifestam, em nome de dez etnias da região do Município de Humaitá-Amazonas, seu desacordo com a construção da hidrelétrica Tabajara, no município de Ji-Paraná, em Rondônia. Leia a manifestação na íntegra, clicando AQUI.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Apagão? Não, imposição de um modelo decadente

Charge: sociedadealternativasaorafaelrn.blogspot.com 

Por Telma Monteiro

Ironia do destino. O JN informou que as hidrelétricas estão com nível quase igual ao da época do apagão.
“Foi o terceiro mês seguido de queda. A quantidade de água dos reservatórios nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, que abastecem 70% do país, vem baixando desde o início da temporada de chuvas: 43% da capacidade de armazenamento em dezembro do ano passado; 40% em janeiro deste ano e 34% agora em fevereiro. É um nível semelhante ao de fevereiro de 2001, ano do racionamento, quando os reservatórios estavam com 33% da capacidade.

Bem feito. Não foi falta de avisos por parte de cientistas, especialistas, pesquisadores, professores. Uma matriz elétrica calcada em mais de 70% em hidrelétricas, com as mudanças climáticas batendo na nossa porta, só poderia dar nisso. “Fartura de energia”, diz o governo. “Somos abençoados por uma energia tão limpa, enquanto o mundo se estapeia por ela”. Mas esse mundo já saiu na frente, buscando a solução. E o Brasil? Não saiu do lugar.

As usinas no rio Madeira foram impostas à sociedade com o argumento de que estaríamos a beira do apagão se elas não fossem construídas. O mesmo argumento foi usado para justificar Belo Monte. O mesmo está sendo usado para também justificar as usinas no rio Tapajós e no rio Teles Pires.

De 2003 até agora, onze anos depois que essa histeria começou, as usinas do Madeira, já em conclusão, não estão servindo para nada. As linhas de transmissão com 2 .450 km para trazer a energia de Porto Velho para o Sudeste, só ficaram prontas depois que as turbinas de Santo Antônio estavam operando. As mesmas turbinas de Santo Antônio que agora foram desligadas por ordem do Operador Nacional do Sistema (ONS) devido à cheia. Linhas de transmissão com custo absurdo não estão transportando, hoje, nenhum MWh. A previsão é que as cheias da bacia do rio Madeira vão avançar para todo o mês de março.

Na mesma toada vão as obras de Jirau, com algumas poucas turbinas em operação, com custos que já dobraram, subsidiados pelo BNDES dos governos de Lula e Dilma Rousseff, estão ameaçadas de colapso pela enchente histórica. Do outro lado da fronteira as autoridades bolivianas gritam que tinham a garantia das autoridades brasileiras de que as usinas não afetariam seu território. Balela! Tanto os bolivianos como os brasileiros sabiam direitinho que a Bolívia sofreria com as hidrelétricas. Até os estudos de viabilidade confirmavam isso. Estudos que os próprios empreendedores fizeram e que a Aneel aceitou.

Nada melhor para calar a boca de uns e outros que promessas de dinheiro e mega obras para políticos corruptos e empreiteiras sequiosas por empreendimentos que consomem muito concreto e ferro e que precisam remover milhares de m³ de rochas. Mais duas hidrelétricas foram acertadas, uma em solo boliviano e outra binacional, e então ficou o dito pelo não dito.

O rio Madeira foi subestimado quando os estudos de viabilidade e ambientais foram elaborados lá em 2002/2003. Nesses onze anos não houve a mínima preocupação do governo para incentivar programas de eficiência energética ou de economia de energia elétrica. População, indústria e comércio continuaram num festival de consumo de energia elétrica, já que o possível apagão iminente, inventado pelo setor elétrico do governo, tinha sido evitado com as usinas no rio Madeira.

Porto Velho está a jusante (rio abaixo) cerca de seis quilômetros da barragem de Santo Antônio e está sofrendo seus impactos. Bom lembrar que Altamira, no Pará, ao contrário, está cerca de seis quilômetros a montante  (rio acima) da barragem de Pimental, da hidrelétrica Belo Monte. Se as cheias que assolam a bacia do rio Madeira se repetirem na bacia do rio Xingu, teremos surpresas desagradáveis. Alguém já está pensando nisso?

Nem as alternativas como a energia eólica e solar fotovoltaica fizeram parte do planejamento sempre ruim do Ministério de Minas e Energia (MME). Menos mal, quem sabe assim, com um sistema à beira de um colapso, alguém no governo começa a pensar em para quem realmente está servindo a energia produzida pelas hidrelétricas e para que ela está sendo utilizada, na verdade. E seria bom aproveitar o embalo para tentar (acho que já escrevi isso mais de uma centena de vezes) minimizar as perdas técnicas das nossas linhas de transmissão e distribuição sucateadas. Isso também gera apagão.

Para agravar a situação, Dona Dilma, querendo fazer gracinha com o povo brasileiro que, infelizmente, não entende essa história de energia elétrica, acabou prometendo descontos mirabolantes na conta de luz. O resultado, evidente, o consumo aumentou.

Como isso tudo vai acabar? Não tenho bola de cristal, mas que a caixa preta do Ministério de Minas e Energia tem que ser aberta, tem. Essa seria uma boa oportunidade com a questão tão evidente na mídia. 

terça-feira, 4 de março de 2014

Hidrelétricas do rio Madeira e impactos teleguiados

Hidrelétrica  Jirau, fotografada hoje, 04/03 - Foto: acpurus.com
Por Telma Monteiro

Resgatando um pouco da história das usinas do Madeira 2

Revisando minhas anotações colhidas durante a pesquisa dos vários documentos que integram o processo de licenciamento dos aproveitamentos hidrelétricos Santo Antônio e Jirau do Complexo do Madeira, em Rondônia, como o Estudo de Viabilidade e o Estudo de Impacto Ambiental (EIA), acabei me deparando com muitas afirmações que nos levam a questionar a legitimidade desses empreendimentos.  

Os técnicos das empresas contratadas pelo Consórcio Furnas e Odebrecht para elaborar os estudos e que pesquisaram os dados que lá estão registrados, me parecem, defendem a tese de “impactos teleguiados”: as áreas de influência do aproveitamento hidrelétrico Jirau iriam até a fronteira com a Bolívia e dali não passariam.

Durante o processo de análise do EIA passou despercebida pelos técnicos do Ibama a mais absurda das conclusões contidas naqueles estudos. Tecnicamente eles deveriam subsidiar a análise e concessão das licenças ambientais de um conjunto de mega empreendimentos polêmicos na Amazônia. O diagnóstico ambiental da Área de Influência Direta (AID), que é fundamental para o processo de licenciamento e obtenção das licenças ambientais, no entanto, só analisou vagamente a influência das usinas até a divisa com a Bolívia.

 No caso da AID do Madeira, segundo o EIA, o limite estabelecido, baseado em algum critério nebuloso, seria a linha da fronteira entre Brasil e Bolívia. Para os empreendedores, naquela linha virtual que separa os dois países, cessariam os impactos como num passe de mágica! E os especialistas e as autoridades das diversas áreas do governo brasileiro insistiram em afirmar, comungando dessa teoria, que a Bolívia não sofreria nenhum impacto decorrente da suposta área alagada de Jirau. Graças à fronteira!

 A teoria de “impactos teleguiados” dos estudos ambientais no processo de licenciamento do Complexo do Madeira não é inédita. Houve um caso esdrúxulo no EIA da Hidrelétrica Mauá, no Paraná, em que o limite da AID era exatamente o limite da Reserva Indígena de Mococa. Incrível! Os impactos, previamente programados, chegariam até a divisa com a terra indígena e deixariam de existir a partir dali, num passe de mágica, num estalar de dedos.

Contrariando o que está no EIA das usinas do Madeira, o Estudo de Viabilidade, também elaborado por Furnas e Odebrecht, afirma que haveria impacto na Bolívia.  O nível de água do reservatório de Jirau, previsto para ser mantido constante, iria influenciar o regime fluvial do rio Madeira a montante (rio acima) de Abunã (divisa com a Bolívia), tornando perene a inundação em áreas que são naturalmente atingidas no período de cheias.  

 No Estudo de Viabilidade se percebe uma armadilha para cooptar as autoridades bolivianas para aprovação do projeto do Complexo Hidrelétrico. Os desenvolvedores acenaram com a possibilidade de, além da construção da usina binacional no trecho do rio Madeira em que o Brasil faz divisa com a Bolívia, incluir os rios Mamoré e Guaporé no conjunto, e assim dar origem a uma extensa rede hidroviária. Em 2003 tudo era possível.

Mais ambiciosa ainda foi a pretensão contida no texto abaixo:

“Ao incluirmos uma usina boliviana, em cachoeira Esperança, no rio Beni, dentro das potencialidades hidroviárias da região, tornamos totalmente navegáveis os rios Beni, Madre de Dios e Orthon, em territórios boliviano e peruano, formando uma rede de mais de 4.200 km de extensão em hidrovias, atendendo aos três países”.

 O poderoso consórcio empreendedor toma para si, ignorando a soberania desses países vizinhos, a façanha de tornar navegáveis rios, sem os necessários estudos de bacia ou consulta aos demais governos, e sem a participação das comunidades envolvidas cá e lá, dentro e fora da fronteiras brasileiras, como se fosse sua atribuição decidir os caminhos da infraestrutura da América do Sul.

A empresa de consultoria contratada por Furnas e Odebrecht para fazer as pesquisas chegou ao preciosismo de ressuscitar até o Tratado de Petrópolis no Estudo de Viabilidade:

 “o Brasil estaria resgatando o compromisso firmado através do Tratado de Petrópolis, da época da aquisição das terras do Acre, de fornecer à Bolívia uma saída para o Atlântico, o que nunca ocorreu devido à inviabilização econômica da Ferrovia Madeira-Mamoré, logo que sua construção foi concluída.” 

 O texto afirma, também, que a Construtora Norberto Odebrecht já estava em fase de conclusão das negociações com as autoridades bolivianas para obter as autorizações necessárias ao desenvolvimento dos estudos do trecho binacional e da cachoeira Esperança. Vão mais além, quando concluem que a Bolívia demonstra “altíssimo interesse” em ambos os projetos, pois viabilizaria sua tão sonhada e adiada saída para o Atlântico.

 Os “impactos teleguiados” que deixam de existir depois das fronteiras molhadas entre Brasil e Bolívia teriam sido indícios suficientes para anular todo o processo de licenciamento ambiental das Hidrelétricas Santo Antônio e Jirau.

  Para encerrar, transcrevi um trecho do Estudo de Viabilidade:

“A versão final do Termo de Referência foi emitida em setembro de 2004, na qual é estabelecido que os empreendimentos devem ser tratados como um complexo e seus estudos ambientais desenvolvidos de forma conjunta.”

Este artigo foi originalmente publicado em 2007 

Ferrogrão – soja no coração da Amazônia

Estudo Preliminar 3 - Ferrogrão e a Soja na Amazônia                                                        Imagem: Brasil de Fato   ...